Via Para Entender Direito
Duas matérias na Folha de hoje (29/3/12):
Na capa do jornal:
“STJ esvazia punição criminal para embriagados ao volante
O Superior Tribunal de Justiça decidiu ontem que testemunhas,
incluindo guardas de trânsito, e testes em que o médico examina o
motorista visualmente não valem mais como prova para incriminar alguém
que dirige bêbado.
Agora, o motorista que não fizer teste do
bafômetro ou exame de sangue não poderá ser alvo de ação penal nem
acabar preso -ele não precisa realizar tais testes porque não é obrigado
a produzir provas contra si mesmo (…)
A lei seca, em vigor desde
2008, exige, para fins penais, um grau mínimo de seis decigramas de
álcool por litro de sangue (dois chopes). O governo, então, regulou a
lei em decreto que diz que a aferição só pode ser feita por bafômetro ou
exame de sangue (…)
O magistrado Adilson Macabu, que conduziu o
voto vencedor, disse que o ‘Executivo editou decreto e há apenas o
bafômetro e exame de sangue’. ‘Não se admite critérios subjetivos’,
afirmou”
E no caderno Cotidiano:
“Ministra critica STJ sobre decisão de estupro
A ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos,
criticou ontem a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) de
inocentar um homem acusado de estuprar três meninas de 12 anos que se
prostituíam (…)
Segundo a lei vigente à época dos atos, a violência
na relação sexual com menores de 14 anos é presumida - ou seja, não é
necessário prová-la para caracterizar o estupro.
O STJ entendeu que
essa presunção é relativa e pode ser afastada caso existam elementos
que comprovem a ausência de violência e a capacidade de consentimento da
criança. O réu foi absolvido.
Em 2009, o Código Penal foi alterado
e a relação sexual com menor de 14 anos passou a ser um crime
específico - o estupro de vulnerável (…)
Para a relatora do
processo, ministra Maria Thereza de Moura, como as meninas eram
prostitutas e não houve prova de que as relações foram mediante
violência, é impossível caracterizar o crime”.
Na primeira decisão, a lei diz que é proibido dirigir com mais do
que 0,6g de álcool por litro de sangue no caso do exame de sangue e 0,3g
no caso do bafômetro (art. 2o do Decreto 6.488/08).
O STJ interpretou esses valores e a forma como devem ser mensurados
objetivamente. Se o exame de sangue constatar que a pessoa estava
dirigindo com 0,59g de álcool por litro de sangue, ela, segundo a
interpretação do STJ, não estará alcoolizada, ainda que todos os demais
indícios visuais e comportamentais sejam de que ela estava totalmente
bêbada.
No segundo caso, a lei dizia que
sexo com menor de 14 anos era estupro (continua sendo crime hoje, mas
agora é chamado de ‘estupro de vulnerável’ e a pena máxima subiu de 10
para 15 anos). Aqui também a lei dá um número preciso: 14 anos. Mas,
nesse segundo caso, o STJ decidiu que esse número deve ser interpretado
subjetivamente. O que importa, segundo o STJ, não é o que está na
carteira de identidade da criança ou adolescente, mas como ele ou ela se
comportam. No caso da matéria acima, ainda segundo o STJ, se já haviam
sido levados à prostitução, quem se aproveitou dessa fatalidade na vida
dos jovens não pode ser responsabilizado criminalmente.
O objetivo da primeira lei é proteger a sociedade contra motoristas
bêbados que coloquem a vida de outras pessoas em perigo. O objetivo da
segunda lei é proteger a sociedade e os jovens contra adultos que se
aproveitam de sua imaturidade.
Quem coloca as duas decisões lado a lado fica com a impressão de que houve injustiça numa ou noutra (ou em ambas).
O problema é que muitas de nossas leis são mal escritas e não deixam
claro como o magistrado deve interpreta-las. No caso do motorista, o
Decreto não diz se bafômetro e exame de sangue são as únicas formas de
exame possíveis ('numerus clausus'), ou se o magistrado pode autorizar
outras formas. Na dúvida, o STJ acabou decidindo pela interpretação
mais benéfica aos réus. O mesmo ocorre com os 14 anos do estupro: a lei
não diz se essa idade é apenas um indicativo ou se há outras formas de
confirmar a maturidade emocional da criança. Na dúvida, novamente, o STJ
escolheu a interpretação mais favorável ao réu. Essa decisão é ainda
mais controversa porque a lei, nesse caso, visa proteger crianças e
adolescentes, que são especialmente vulneráveis, e o STJ escolheu uma
interpretação que, na verdade, os expõem ainda mais não só à exploração,
mas também a pressões posteriores do acusado, para dizerem que
aceitaram voluntariamente a fazer sexo com ele.
Na maior parte dos países desenvolvidos, os magistrados das cortes
superiores, na dúvida sobre como interpretar uma lei, levam em conta as
razões pelas quais a lei foi feita (as razões de política pública que
geraram a lei). No Brasil, isso raramente é feito porque tememos a
insegurança jurídica.
O argumento é que,
se os magistrados começam a interpretar a lei baseado em políticas
públicas, eles passam a fazer análises subjetivas e isso cria
instabilidade jurídica. O problema com esse argumento é que ele presume
que objetividade depende de uma interpretação formal. Algo como 'se
ignorarmos as políticas públicas, seremos objetivos’. Mas isso não é
verdade. Subjetividade existe também quando se interpreta o texto puro e
simples da lei (como exemplificado pela segunda matéria acima), e é
possível sermos objetivos quando analisamos políticas públicas (por
exemplo, o texto das comissões que preparam os projetos de lei são às
vezes bem objetivos sobre as razões pelas quais tal projeto foi escrito
de determinada forma).
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