Para
quem acha que trabalho infantil é coisa de “povinho atrasado”, de
Terceiro Mundo, culpa de pais que exploram seus próprios filhos, uma
prova de que, na “liberdade absoluta de mercado”, não importa se na
Europa, na Ásia ou na América Latina, é o empobrecimento que leva à
barbárie.
A repórter Cécile Allegra, do Le Monde, conta a história de Gennaro, um garoto napolitano que acaba de completar 14 anos. Uma história que nossos jornais, sempre tão pródigos em mostrar como nossa miséria repercute no mundo europeu, deixou passar, embora forte e emocionante, um retrato de que não é nossa mestiçagem, nem nosso caráter, nem nossa natureza o que nos atira ao atraso.
É a pobreza.
Gennaro foi contratado por uma
mercearia. Seis dias por semana, dez horas por dia, arruma prateleiras,
descarrega caixas e entrega compras no bairro.
Gennaro sonhava ser informático, mas é moço de recados numa loja, a profissão mais comum entre as crianças trabalhadoras de Nápoles. Trabalha ilegalmente, por menos de um euro a hora, e ganha, no máximo, 50 euros por semana.
Paola Rescigno, a mãe de Gennaro, nunca imaginou que um dia tivesse de o privar da escola. Durante 20 anos viveu com o marido numa casinha de 35 m2, num pátio do bairro de San Lorenzo, o mais sombrio do centro da cidade.
Depois, o marido morreu, vítima de um cancro fulminante. Agora, Paola Rescigno vive de biscates. Organizou uma míni empresa de limpeza de imóveis e partilha o trabalho com as outras desempregadas do bairro. Ganha 45 cêntimos de euro por hora, 35 euros por semana, menos do que o salário do filho.
É ela quem, todos os dias, muito cedo, acorda Gennaro para que o rapaz chegue a tempo na mercearia. A filha mais nova tem seis anos, por isso, teve de escolher: “Não tinha dinheiro para pagar os livros dos dois. Por isso, ou era um, ou outro.” Em cima da mesa da cozinha está um “pão de oito dias”, uma bola de centeio com três quilos, que se conserva durante muito tempo e custa apenas cinco euros.
Gennaro é uma das 45 mil crianças em toda a Campânia, a região de
Nápoles, deixaram a escola pelo trabalho, quase 40% delas com menos de
13 anos. Em 2010, o Estado cortou o subsídio – uma espécie de
“bolsa-família” dado aos mais pobres. E o trabalho infantil, que parecia
quase abolido, retornou com toda força. Como Gennaro, trabalham dez,
doze horas por dia, ilegalmente, com salários muito menores.
“Moços de recados em lojas,
empregados de café, entregadores de compras, aprendizes de
cabeleireiro, ajudantes nas fábricas de curtumes do interior e nas
marroquinarias (oficinas de couro) das grandes marcas, “paus para a toda
a obra” nos mercados, estão por todo o lado, visíveis, a trabalhar à
luz do dia, perante uma indiferença quase geral.”
A miséria devolveu, como nos anos do pós guerra, a infância à Camorra, a Máfia napolitana. Pasquale,
de 11 anos, poderia bem ser um garoto brasileiro, destes que a nossa
direita quer ver chacinados ou mandado para depósitos de lixo humano:
(…)este rapazinho de 1,30 metros, com
a cara semeada de sardas, descarregava caixas num supermercado. À
noite, ia roubar cobre para as lixeiras e para os armazéns de
Trenitalia. “Pegas no fio, queimas assim, depois cortas para fazer uma
bola”, explica ele, todo vaidoso.
Mostra-se um pouco preocupado:
“Sobretudo, não digas à minha mãe que eu tenho uma faca, hein!”. No
bairro da Barra, o cobre e o alumínio são negociadosno mercado negro a
20 euros o quilo. E o tráfico é o negócio das crianças. Quando se lhe
pergunta o que quer fazer quando for grande, Pasquale, de repente, fica
mudo. Depois choraminga: “Vou fazer o que puder”.
Esta é a tradução humana da crise financeira, do atolamento dos
Estados nacionais europeus em dívidas contraídas para que o capital
financeiro, os investidores, não passem nem de longe pelo que passam
Gennaro e Pasquale. Eles não desestabilizam as bolsas, não participam
das cúpulas da Zona do Euro, não especulam no mercado.
Apenas incineram suas infâncias em nome da “sanidade das finanças”.
Chocam, talvez, porque se chamam Gennaro e Pasquale, e não José e João. E vivem em Nápoles,não numa periferia brasileira.
Lá, como cá, o império absolutista da finanças, dono do poder de vida e de morte é o impiedoso algoz de sonhos e vidas infantis.
E ainda chamam de deus ao “mercado”!
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