segunda-feira, 26 de março de 2012

Com Chico Anysio o fascismo não sorria

Gilson Caroni Filho no Correio do Brasil

Com o desaparecimento de Chico Anysio, vale lembrar o dito rikiano de que “a fama é a soma de todos os equívocos em torno de alguém”? Ou estamos assistindo a grandes e justificadas homenagens ao mais importante humorista das últimas quatro décadas? Ciente da força corrosiva do humor e da sátira, Chico criava personagens obstinadamente, talvez intuitivamente, sabendo que o jogo da linguagem crítica é, em si, o jogo do espírito em seu aspecto lúdico.



A irreverência no trato com autoridades e seu refinado senso de resistência política o levaram a um intenso processo de criação, como se não quisesse perder um só detalhe do que estivesse à sua volta. Operando com similaridades e antíteses, captou, com sua lente fina, as luzes e o dia-a-dia do povo brasileiro, dos oligarcas aos estratos populares que não se curvam ao desencanto e à decepção. Do rádio à televisão, Chico Anysio foi um perito em extrair de múltiplos detalhes da nossa formação cultural significados precisos, dissolvendo mitos e máscaras com o ácido sulfúrico da piada certeira e do sarcasmo.

Como ninguém, ele soube fazer isso com ternura, estranha ternura onde o lado amargo da vida é plenamente resgatado pelo humor atordoante. Há quem diga que, como os poetas, os humoristas habitam um mundo em decomposição e decadência, mas o fazem de forma visceral, com arte feita do mais puro aço da reflexão e da lucidez crítica.

Dotado de profunda consciência social, o cearense de Maranguape tem uma face pouco conhecida, que vai bem além do talentoso humorista, autor e compositor: a de um resistente que não se curvou às tentativas de cooptação dos setores golpistas aglutinados, nos anos 1960, na rede de propaganda geral e doutrinação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES).

Conforme nos revela René Armand Dreifuss (1981: 248), “a elite orgânica se aproximou de inúmeros produtores, atores e diretores famosos de televisão, tais como Gilson Arruda e Batista do Amaral. Favorecia o uso de programas cômicos, quando possível. Rui Gomes de Almeida observava que uma piada contra um político provocaria um “dano enorme”. Negava, ao contrário, o apoio aos atores que não cooperassem ou agissem contra os programas, as linhas de raciocínio e as pessoas que o IPES patrocinava. Tal foi o caso do humorista Chico Anysio, sagaz observador da realidade social”. [1]

Na melhor tradição do humor de combate, ainda que sem engajamento explícito, Chico não renegou princípios. Entendeu corretamente e cumpriu com competência a melhor missão do humor: a de fiscal mordaz e crítico visceral das estruturas do poder. Na galeria de mais de duzentos personagens, há lugar de destaque para a velha oligarquia e parlamentares com um profundo sentimento antipopular. Tudo operado com destreza e rara sensibilidade.

Na ausência de herdeiros, o panorama, após sua morte, é desolador. Quadros do Instituto Millennium elegem o ódio de classe, a homofobia e a descriminação de gênero como mote para piadas grosseiras. Programas como Casseta & Planeta e CQC parecem restabelecer uma velha sina: no Brasil, homens que tiveram voos de águia ou condor acabam em incursões galináceas, saltando direto para o poleiro. Enquanto outros, ainda jovens, antecipam a hora do perjuro.

Vai-se a multiplicidade que transforma. Fica a vala comum do transformismo. Não esperem perspicácia, iconoclastia irônica e imaginativa. O que toma a cena como “humor político” nada mais é do que o fascismo que lhe sorri.

Nota [1] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 198

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