segunda-feira, 26 de março de 2012

Viagem ao Brasil que não fala em crise

Ricardo Kotscho no Balaio do Kotscho

MONTEIRO LOBATO (SP) _ Pelo título desta matéria, o leitor já notou certamente que não viajei para Brasília. Passei o final de semana num outro País, no chamado Brasil real, para fazer uma reportagem sobre a arte e a cultura popular paulistas que será publicada na próxima edição da revista Brasileiros.

O trabalho me levou a conhecer a família de duas brasileiras que não se queixam da vida: a figureira Maria Benedita dos Santos, a dona Lili, de 93 anos, em São José dos Campos, e a quituteira Maria Aparecida de Batista Claro, de 61 anos, em Monteiro Lobato.

Durante dois dias, não ouvi falar em crise e me diverti ouvindo as histórias de duas mulheres que ganham a vida com a sua arte. Em nenhum momento, nas longas horas que passei nas casas delas, cheias de parentes e amigos, saborosos quitutes sobre a mesa, alguém comentou qualquer coisa sobre base aliada, Lei Geral da Copa, Código Florestal, queda nos investimentos, Demóstenes Torres, Carlinhos Cachoeira, Gilmar Mendes, Ivan Sartori, prévias do PSDB e outros assuntos e personagens da semana.


Dona Lili e Maria nasceram na roça e viveram a vida toda nos mesmos lugares, no Vale do Paraíba, cercadas por famílias grandes, fogões a lenha, panelas de ferro, hortas, pomares e galinhas no quintal. Viram chegar a energia elétrica e a televisão, os telefones celulares e a internet, mas nunca mudaram suas rotinas.
Cada uma no seu ofício, ajudaram a preservar a cultura caipira. Elas acosturamara-se a viver com muito pouco, mas nunca passaram fome e em suas casas não falta nada.

"Sempre que forem lavar o rosto vão se lembrar de mim...", diverte-se dona Lili, que nas horas vagas, quando não está fazendo suas figuras de barro, vendidas por 5 reais (as maiores chegam a custar 50 reais, dez vezes menos do que o preço cobrado nas lojas), agora também borda toalhas, presenteadas aos seis filhos, 11 netos e 11 bisnetos.

Ao lado do marido Otacílio Francisco Claro, 72 anos, que cuida da lavoura, e do irmão João Batista da Silva, o Zezinho, 63 anos, seu parceiro nas panelas em barracas de comida que montam em feiras, festas e rodeios, Maria prepara o tradicional almoço de sábado para a família reunida no velho sítio às margens da estrada entre São José dos Campos e Monteiro Lobato.

Feijão tropeiro e arroz carreteiro, preparados com as mesmas receitas dos bandeirantes, passadas de uma geração a outra, não podem faltar à mesa. Do fogão a lenha saem também torresmo, frango na panela de ferro, polenta, o cardápio da São Paulo de antigamente, que sobrevive nestas terras longe do noticiário catastrófico do Brasil de Brasília e das grandes cidades. Uma boa cachacinha, claro, não pode faltar, que ninguém é de ferro.

O queijo, a linguiça, as farinhas de milho e mandioca, e até o açucar são feitos lá mesmo no Sítio Santa Clara, no Bairro dos Ferreiras, onde as pessoas só discutem por causa de futebol ou do tempo que vai fazer amanhã. Otacílio pode passar horas ao lado do tacho de cobre apurando a garapa até virar açucar, como era no tempo dos escravos. Com a raspa do tacho, oferece às visitas de sobremesa a melhor rapadura do mundo. E fica feliz com os elogios. Não precisa de mais nada na vida.

Para quem anda desanimado da vida com tudo que lê, ouve ou assiste, recomendo fazer de vez em quando esta viagem para a gente não perder o contato com a realidade de um país de gente feliz que não aparece na mídia. Faz bem à alma, aos olhos e ao paladar.

Em tempo: para não dizer quer não falei de problemas, a nota triste da viagem foi o pernoite na pequena Monteiro Lobato, cidade de apenas 3.800 habitantes, que homenageia um dos maiores escritores brasileiros, nascido naquela região. Me lembrou muito uma das suas primeiras obras, Cidades Mortas, publicada em 1919, retratando o cotidiano das populações pobres do Vale do Paraiba, que viveram a derrocada da produção de café. 

Monteiro Lobato virou apenas um caminho de passagem em direção a Campos do Jordão, São Francisco Xavier e o sul de Minas, a estrada SP-50 com suas carretas pesadas e barulhentas passando pelo centro da cidade, que fecha suas portas às oito da noite, quando os cachorros vadios ocupam a praça principal. Fosse vivo, Monteiro Lobato poderia escrever outro belo livro sobre as Cidades Mortas em Monteiro Lobato. Isso é triste, mas a vida continua.

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