(Nessa
história toda da denúncia do Faustini no Fantástico, alertado pelo
leitor José Feitosa, algo no mínimo curioso chama a atenção: a
Toesa Service, empresa de aluguel de veículos, acusada de corrupção em
licitações num hospital público do Rio de Janeiro, presta serviço à Rede
Globo. As ambulâncias do Projac têm
o logotipo da empresa e os funcionários andam uniformizados. Conhecendo
o histórico dos Marinho, não duvidaria se a ação contra sua própria
prestadora de serviços não fosse apenas um dos tantos sortilégios a que
políticos e outros são vítimas frequentes.)
por Sylvia Debossan Moretzsohn
por Sylvia Debossan Moretzsohn
A reportagem do Fantástico de
18 de março, que expôs cenas de corrupção e fraude em licitações
emergenciais num hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), teve repercussão compatível com a gravidade da denúncia, que
entretanto está longe de ser inédita.
O
caso escolhido foi o de um hospital público, mas poderia ser constatado
em qualquer outro setor. A situação é conhecida: o gestor convida
empresas, elas se apresentam e negociam o percentual de propina, o
serviço superfaturado é contratado e a vida segue, com os danos de
sempre aos cofres públicos.
Se
todo mundo sabe disso, por que tamanho alvoroço? Porque o impacto das
cenas gravadas por câmeras ocultas é sempre muito forte. E produz um
efeito de ineditismo que apaga da memória dos espectadores tudo o que já
foi dito, publicado ou exibido sobre situações semelhantes.
Por isso a emissora se permite declarar, em anúncio de meia página na edição do Globo do
domingo (25/3), que tal reportagem “revelou uma realidade que alertou o
Brasil”. O título reitera o suposto ineditismo, além do protagonismo – e
do autoatribuído poder – da rede de TV: “Corrupção na saúde: revogamos a
lei do silêncio”.
Porém,
a própria reportagem original menciona, embora apenas de passagem, que
as empresas citadas estão sendo investigadas pelo Ministério Público por
diferentes irregularidades e, apesar disso – o que parece aberração,
mas não é, porque a lei permite que continuem atuando enquanto o
processo não for concluído –, seguem entre os maiores fornecedores do
governo e recebem juntas meio bilhão de reais em contratos feitos com
verbas públicas.
Já no dia seguinte, o Jornal Nacional informava
que três das quatro empresas mencionadas na reportagem estavam sendo
investigadas pelo Tribunal de Contas da União. Na quinta-feira (22/3), O Globo destacava, em manchete de página, os “‘Debutantes’ em suspeitas”, lembrando que as ações do TCU começaram há 15 anos.
Por que, então, a reportagem do Fantástico optou
por montar a cena de corrupção explícita? Por que privilegiou a
exibição das propostas de propina em vez de destacar os processos
judiciais que se arrastam sem solução? O que é mais importante: exibir –
e repetir, repetir e repetir – as cenas de corrupção ou informar sobre
os motivos que levam as denúncias a se perderem no tempo, a ponto de
serem arquivadas ou não resultarem na devida punição?
A montagem do cenário
Vamos recapitular: em 18 de março, o Fantástico anunciava
sua mais recente denúncia: a oferta de propina por parte de empresas
interessadas em participar de licitações emergenciais no serviço
público, e todo o esquema que envolve a “concorrência” de cartas
marcadas. Eduardo Faustini, o famoso “repórter sem rosto”, obtém a
autorização do diretor do hospital de pediatria da UFRJ, no Fundão, para
se fazer passar pelo gestor de compras da instituição e atuar como tal
durante dois meses, para provocar e flagrar a situação, através da
instalação de câmeras ocultas no respectivo gabinete.
Além
de alguns detalhes reveladores da recorrente precariedade da estrutura
do serviço público – a fórmica azul descascada na base da porta da sala,
as cadeiras com o forro preto rasgado deixando aparecer a espuma do
estofo –, as imagens expõem os empresários, ou seus representantes,
acenando com o que uma delas diz ser a “ética do mercado”: o pagamento
de determinado percentual, que pode ser de dez, quinze, até vinte por
cento do preço contratado, ao servidor responsável pela licitação. A
reportagem, de 22 minutos, intercala entrevistas com o diretor do
hospital, que justifica o acordo com o jornalista, e com o diretor da
ONG Transparência Brasil, Claudio Weber Abramo, explicando como é
possível forjar “emergências” – como deixar acabar material de limpeza,
por exemplo – para justificar esse sistema de compra.
Catarse virtual
Expor
o comportamento daquelas pessoas, tão seguras da impunidade, ou
tentando estabelecer um código tosco para a eventualidade de uma
gravação escondida – o gerente que fala em “camisas” em vez de cifras, e
pede que o interlocutor feche o laptop, sem desconfiar das câmeras
espalhadas pela sala –, é oferecer ao público uma espécie de catarse
virtual. Como se estivéssemos vingados apenas porque passamos a conhecer
o rosto de meia dúzia de empresários – ou seus prepostos – corruptos.
Como se isso fizesse alguma diferença.
A
reação no campo político era previsível: autoridades afetando surpresa e
indignação, anunciando providências para o cancelamento de contratos
com aquelas empresas, e a oposição alardeando a criação de uma CPI. Em
meio a tudo isso, a notícia no Jornal Nacional da
terça-feira (20/3), de que há dois anos o governo federal enviou
projeto prevendo punição para empresas que corrompam funcionários
públicos, justificado pelo relator, que informa sobre a precariedade da
lei atual, na qual apenas pessoas físicas são puníveis, e sobre a demora
no processo, que acaba tornando letra morta a hipótese de punição.
As armadilhas do método
A
repercussão da reportagem deveria provocar algum debate sobre a
utilização de câmeras ocultas para a constatação e divulgação de
denúncias como essa. Costuma-se dizer que, em certas situações, apenas
dessa forma se consegue obter as informações necessárias. Se fosse
verdade, tais empresas não estariam sendo investigadas há tanto tempo.
No entanto, o que importa não é bem a informação, mas a maneira pela
qual ela é exibida – não por acaso foram tantas as referências ao Big
Brother nos comentários sobre a reportagem.
Aí
sim, a câmera oculta é imprescindível: porque exerce esse fascínio
sobre o público, convidado a penetrar a zona proibida das negociatas,
seguindo os passos do repórter sem rosto, ainda que sua imagem – de
costas, subindo as escadas até o gabinete – não corresponda à sua
identidade. O que importa, para a TV – ou esta TV –, é o impacto da imagem sobre os espectadores. Fazê-los pensar é outra história.
(Nem
se diga, como querem tantos teóricos, que a TV impede o pensamento, por
sua própria estrutura: de fato, a TV assimila perfeitamente a lógica do
espetáculo, mas não obrigatoriamente se rende a ela; do contrário – à
maneira do que disse Balzac a respeito da instituição da imprensa, que
deplorava –, seria mesmo melhor que não tivesse sido inventada).
Enxurrada de elogios
Então
o senador Pedro Simon (PMDB-RS), num texto que não faz jus à sua
conhecida verve, publica artigo na edição de sexta-feira (23/3) do Globo enaltecendo
a reportagem, que cumpriria “todas as exigências formais do bom
jornalismo” – ainda que essas exigências se resumam ao atendimento às
perguntas elementares de qualquer matéria, “o que, quem, quando, onde,
por que”. Igualmente, no sábado (24), Zuenir Ventura escreve no mesmo
jornal um elogio a esse “bom jornalismo” que, “com criatividade,
paciência e argúcia (...) fez um dos mais contundentes libelos contra a
corrupção, sem aparecer e sem precisar usar um adjetivo sequer,
passando a palavra aos próprios personagens para se confessarem e se
incriminarem”. E prossegue: “Nada é contado por ele [o repórter], mas
mostrado ao telespectador sem mediação ou retoque, didaticamente” (os destaques são meus).
O
repórter sem rosto, por definição, não aparece, mas por isso mesmo sua
ação é mais notável do que se estivesse pautada pelos métodos comuns de
reportagem: é essa aura de mistério que atrai tanto o interesse e a
admiração do público; os adjetivos ausentes na gravação escondida são
abundantes na edição das imagens, tanto na intervenção dos âncoras, no
estúdio, quanto nas palavras do repórter que apresenta matéria; sobre a
falta de mediação, francamente, o argumento chega a ser constrangedor:
um jornalista experiente deveria ter claro que essa ilusão provocada
pela câmera oculta, levando ao público a sensação de estar observando o
desenrolar das cenas tais quais aconteceram, como a pura expressão da
verdade, esconde o processo de edição, fundamental em qualquer caso.
Esta a armadilha do método: como escrevi há muito tempo,
as “evidências” exibidas dessa forma “elidem a existência do jogo de
representações inerente às relações sociais – o que a câmera expõe é
visto como um flagrante que surpreende algum ilícito, uma prova
irrefutável de ‘verdade’, sem mediações ou interferências – e encobrem
justamente essas interferências contidas na própria mediação: o
comportamento do ‘repórter sem rosto’, as perguntas que não vão ao ar, o
não revelado estímulo a que a fonte adote atitudes que configurarão o
ilícito a ser comprovado”.
Por
isso não entendemos bem por que a roliça e gaiata negociadora de uma
das empresas cobre o rosto ao final da reportagem, fingindo preocupação
porque iria “sair no Fantástico”:
o que teria provocado tal reação? Menos ainda entendemos por que o
diretor do hospital aceitou franquear o acesso ao repórter que se
disfarçaria de gestor. Em entrevista, ele declara seu desejo de
demonstrar que nem todo comprador de hospital é desonesto. Mas por que
recorreu à imprensa, e não apelou à polícia para flagrar o esquema, ou a
instâncias formalmente constituídas para receber tais denúncias? Como
justificou o afastamento do verdadeiro gestor da instituição? Que riscos
estará correndo agora, já que – diferentemente do repórter – sua
identidade é bem conhecida? O que pode acontecer a quem rompe com a
“ética do mercado”, baseada no acordo do “eu te projeto e tu me
proteges”?
A justiça “imediata” e o desprezo às instituições
Se
o papel do jornalismo é esclarecer, seria necessário ir muito além da
exposição de um flagrante, que se esgota no impacto causado pelo
escândalo e nos deixa indignados diante de tamanha aberração, sem
qualquer alternativa de ação. Para que serve esse tipo de jornalismo?
Talvez uma chave para a compreensão seja a entrevista que o “repórter sem rosto” deu à revista Trip de
fevereiro de 2011, ilustrada, bem a propósito, com um retrato falado
desse “personagem” e ressuscitada dias atrás no Facebook.
“Você
está entrevistando Deus”, diz um colega ao autor da matéria. Faustini,
ele mesmo, é mais modesto: considera-se um sacerdote. Diz que gosta de
“jogar luz em uma zona que está escura”, mas seu propósito está longe de
qualquer projeto iluminista. Pelo contrário: embora afirme admirar os
profissionais que trabalham mostrando a cara e investigando documentos,
ele prefere “resolver a questão numa filmagem”, porque “no dia seguinte,
a casa do cara já caiu”.
É
sua forma de compensar “a Justiça lenta, ineficiente” – embora ele
mesmo não se considere um justiceiro. Mas, ao mesmo tempo, tampouco acha
necessário subordinar-se à lei: “A relevância de um fato é sempre mais
importante que a infração que estou cometendo. (...) O interesse público
é o meu foco. Pra mim, ele é mais importante que qualquer lei ou regra
de etiqueta”. Também considera o segredo de justiça um absurdo, porque
“não protege a dona Maria ou o seu João, protege apenas o milionário
corrupto”.
Entender
que o aparelho judiciário está marcado por interesses de classe é uma
coisa; concluir que daí ele atende apenas aos poderosos é um equívoco
facilmente demonstrável. Mas não é difícil identificar as origens e as
consequências desse pensamento rasteiro que exclui as mediações próprias
do regime republicano – por menos que estas sejam as características de
nossa formação sociopolítica – para buscar a comunicação direta com o
público.
Todos os regimes totalitários agiram assim. Sempre em nome do povo.
Será mesmo este o caminho do bom jornalismo?
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