Julgo que os legisladores ao debruçaram-se sobre
a necessidade de se fazer uma lei para qualquer coisa devem levar em conta um
sem número de circunstancias entre elas o momento histórico, os hábitos
culturais, usos e costumes diversos e vai por aí afora.
É de se imaginar, portanto que uma infração ou crime não deva ser julgado dentro da estrita
interpretação da lei, mas há que se considerarem
as nuances de cada ocorrência. Caso contrário o julgador corre o risco de
tornar-se apenas um "leitor de leis", um defensor de talião, do olho
por olho e dente por dente. Um julgador assim é um acessório desnecessário.
Do julgador deve-se exigir uma boa dose de
compreensão da natureza humana, senso de solidariedade, conhecimento das
misérias dos homens para, sempre a luz da lei, mas não estritamente dependente
dela julgar com humanidade. Desconfio que um julgamento isento deve sempre levar as imperfeições dos
modelos de sociedade que vivemos e acima de tudo proteger sempre a parte que,
por condições culturais, físicas e econômicas, é a mais vulnerável.
Segue ganhando repercussão a polêmica votação do Superior Tribunal de
Justiça, que na semana passada absolveu um homem acusado de haver
estuprado, em 2002, três meninas que na ocasião tinham 12 anos de idade.
Os jornais publicam na sexta-feira (6/4) uma manifestação do Escritório
Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos. Segundo a declaração oficial do representante
da instituição, “é impensável que a vida sexual de uma criança possa ser
usada para revogar seus direitos”. De acordo com sua interpretação, a
decisão do STJ abre precedente perigoso e discrimina as vítimas com base
na idade e gênero.
A votação dos desembargadores já havia sido deplorada por
representantes da Unesco, o organismo da ONU para Educação, Ciência e
Cultura, e vem sendo criticada também por autoridades brasileiras, entre
as quais a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos.
Na quarta-feira (4/4), o Ministério Público Federal ingressou com
embargo de declaração na tentativa de alterar a decisão da corte.
Esforço global
O Superior Tribunal de Justiça considerou que, como o fato aconteceu
antes da lei de 2009 que passou a considerar “estupro de vulnerável” ter
relações sexuais com menores de 14 anos, mesmo não havendo violência o
autor não poderia ser condenado, uma vez que as meninas já se
prostituíam, ou seja, teriam supostamente condições de consentir em
fazer sexo com ele.
Os críticos observam que a lei de 2009 apenas tornou mais explícita a
norma que, em sua essência, considera a situação de vulnerabilidade de
crianças e adolescentes. Essa circunstância é ainda mais clara no caso
das meninas que são objeto desse julgamento.
Embora o processo corra em segredo de Justiça, sabe-se que elas viviam
em condições de extrema pobreza e vulnerabilidade, circunstância que foi
usada pelo acusado e que, segundo a interpretação de juristas ouvidos
pelos jornais, reduz a possibilidade de discernimento. Além disso,
acrescentam os críticos, as decisões judiciais sobre questões delicadas
que envolvem pessoas vulneráveis devem levar em conta os aspectos
sociais de cada caso.
As mudanças inseridas na legislação em 2009 tiveram como motivação a
conveniência de eliminar dúvidas dos juízes exatamente na interpretação
da palavra “violência”. Até então, os tribunais discutiam se seria
preciso provar a ocorrência de constrangimento físico, ameaça ou fato
semelhante para configurar a violência no ato sexual com menores de 14
anos.
Mas a lei anterior já considerava estupro mesmo a relação consensual,
levando em conta a presunção de violência em função da desigualdade de
recursos entre o perpetrador adulto e a vítima imatura.
Como lembra o representante da ONU, legislações desse tipo foram também
criadas em função de tratados internacionais, no esforço global pela
proteção de crianças e adolescentes por todo o mundo.
Discussões de botequim
Com todas essas evidências, chega a chocar a alegação do Superior
Tribunal de Justiça, que se distancia do raciocínio que se espera dos
magistrados e se aproxima do conjunto de preconceitos de gênero e do
machismo típicos de discussões de botequim.
Ao perseguir o assunto e dar destaque à polêmica decisão judicial, a
imprensa contribui para combater esse resquício de incivilidade que, ao
que parece, ainda contamina até mesmo certas cortes de Justiça.
Além do aspecto jurídico, que se configura nessa interpretação
controversa da lei, chama atenção o efeito pedagógico invertido, pelo
qual os magistrados induzem a considerar aceitável o fato de um adulto
procurar meninas de 12 anos para atos libidinosos, ainda que elas
estejam na condição de prostituição
.
Dirão os cínicos – e essa parece ter sido a interpretação dos juízes do
STJ – que essa é a realidade social. O que a imprensa está dizendo é
que essa é uma realidade social inaceitável, e não uma condição que deva
servir impunemente à vontade e aos impulsos de um adulto.
O processo civilizatório tem esse pedágio: a necessidade de que os
indivíduos considerem quanto custa ao outro a satisfação de seus
desejos.
O Estado, por meio do Legislativo, procura estabelecer normas claras
sobre o que é admissível nas relações interpessoais, mas cabe ao cidadão
conhecer seus limites e à Justiça punir os excessos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário