"Incomodo-me bastante que muitas plantas dos apartamentos no Brasil ainda tenham o “Quarto de Empregada” destacado, ao lado da cozinha e da lavanderia – versão contemporânea da senzala. Pode parecer besta, mas isso é carregado de simbolismo e, portanto, fundamental, herança da escravidão oficial, que moldou o nosso país. Aquele tantinho de espaço ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à criadagem me irrita. “Ah, mas como você quer que a minha empregada durma no serviço?” Primeiro, tenho vontade de jogar um litro de cândida na cabeça da “sinhá” que solta um “minha” empregada, como se fosse uma tábua de passar roupa, um objeto pessoal. Segundo, se ela tiver que dormir no serviço, deveria compartilhar um espaço mais digno que o furúnculo da casa."
Eu não gosto de republicar textos. Mas em homenagem à sociedade
brasileira nesta sexta (27), Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica, eu
me dou o direito a abrir uma exceção. Até porque, por conta de
efeméride, aparecem dezenas de especialistas elogiando essas
“incansáveis companheiras do lar” ou “assistentes do dia-a-dia”. Mas, em
outras época do ano, pipocam doutores dizendo que não é o momento de
garantir direitos a determinada categoria de trabalhadores porque a
economia não aguenta, vai gerar mais informalidade, as estruturas do
país não suportam esse luxo ou o bagre-de-cabelo-moicano não se
reproduziu ainda este ano.
A Organização Internacional do Trabalho, em sua 100ª Conferência
realizada em Genebra, na Suíça, aprovou direitos iguais para
trabalhadores domésticos em relação ao restante da sociedade.
Ratificando a nova convenção que tratará do tema, o Brasil terá que
alterar a Constituição para fazer valer a isonomia. Hoje, por exemplo, é
facultativo recolher o FGTS dos trabalhadores domésticos. Com a
mudança, deve se tornar obrigatório.
O país conta com mais de 7,2 milhões de trabalhadores domésticos – o
ideal seria falar em “trabalhadoras domésticas”, uma vez que a
esmagadora maioria é composta de mulheres, mas a nossa língua, crescida
em terreno patriarcal, tem suas leviandades. Apenas em 2008, o aumento
na categoria foi de 600 mil pessoas – fruto do crescimento econômico.
Elas ganham, em média, menos de um salário mínimo por mês e passam por
jornadas de quase 60 horas semanais (cadê o pessoal que gosta de
espernear quando se fala em redução da jornada de trabalho?)
Por que levou tanto tempo para aprovar uma convenção assim, uma vez
que as discussões se arrastam por meio século? Porque a Europa precisa
de mão-de-obra barata, mas não quer garantir aos imigrantes os mesmos
direitos de quem nasceu no continente. Reclamam que isso vá gerar uma
hecatombe sobre suas contas previdenciárias – mas na hora em que
precisam de alguém para fazer o trabalho sujo por eles ninguém fala
nada. Além disso, o aumento no custo do trabalho doméstico impacta
diretamente no custo de vida de uma parcela da população, pressionando
por aumento de salários de quem utiliza desses serviços, o que gera
demandas junto a empresas e governos.
Mas se ignorarmos os direitos dessas trabalhadoras, estamos
considerando que uma sociedade pode (continuar a) aceitar basear o seu
crescimento sobre o esfolamento de um determinado grupo.
(Só por curiosidade, trabalhadoras domésticas no Brasil e no mundo
têm sido reduzidos à condição de escravos, trazidos do interior ou de
outros países, com bastante frequência. Paris, com suas meninas
argelinas que não podem sair de casa, e as sobrinhas que saem do
Nordeste para trabalhar na casa dos “tios” nas capitais são exemplos
disso.)
Incomodo-me bastante que muitas plantas dos apartamentos no Brasil
ainda tenham o “Quarto de Empregada” destacado, ao lado da cozinha e da
lavanderia – versão contemporânea da senzala. Pode parecer besta, mas
isso é carregado de simbolismo e, portanto, fundamental, herança da
escravidão oficial, que moldou o nosso país. Aquele tantinho de espaço
ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à
criadagem me irrita. “Ah, mas como você quer que a minha empregada durma
no serviço?”
Primeiro, tenho vontade de jogar um litro de cândida na
cabeça da “sinhá” que solta um “minha” empregada, como se fosse uma
tábua de passar roupa, um objeto pessoal. Segundo, se ela tiver que
dormir no serviço, deveria compartilhar um espaço mais digno que o
furúnculo da casa.

Garantir direitos iguais vai gerar informalidade no Brasil? Se o
governo não fizer seu trabalho de fiscalização e os trabalhadores não se
organizarem de forma firme para reivindicar isso, vai sim. Mas a
incapacidade do Estado em garantir o cumprimento de uma lei não tira
dela a sua legitimidade. Ainda mais quando é uma regra civilizatória e
que traz dignidade.
De acordo com documento da Organização Internacional do Trabalho, “as
mulheres e os negros são mais presentes nas ocupações informais e
precárias e as mulheres negras são a grande maioria no emprego
doméstico, uma ocupação que possui importantes déficits no que se refere
ao respeito aos direitos trabalhistas” no Brasil.
As trabalhadoras domésticas representavam 15,8% do total da ocupação
feminina em 2008. São 6,2 milhões de mulheres que se dedicam a essa
profissão, e a maioria delas são negras. Mais de 20% das mulheres negras
ocupadas estão precisamente no trabalho doméstico, que é caracterizado
pela precariedade. Somente 26,8% das domésticas tinham carteira de
trabalho assinada em 2008. Entre as trabalhadoras domésticas negras, o
nível é ainda maior: 76% não possuem carteira assinada.
Estamos crescendo economicamente. E, por isso, este é o momento ideal
para mudarmos o rumo das coisas e garantir direitos. Essa conta nós
temos que bancar, um preço baixo por garantir igualdade. Afinal de
contas, é legítimo mantermos o conforto de alguns em detrimento à
qualidade de vida de muitos?
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